A tradição é um elemento capaz de ser localizado dentro de qualquer cultura e que também possibilita a construção de identidades da população pertencente a este meio. É a partir da tradição que conseguimos distinguir uma cultura de outra e que também se constrói o sentimento de pertencimento àquele local ou àquele contexto: um sentimento de “minha terra” ou “minha tradição”.
O mês de setembro para o Rio Grande do Sul é, sem dúvidas, importante, pois se trata de um momento para cultuar e praticar, de forma ainda mais viva, os hábitos gaúchos que passam pelas artes, com as danças e músicas típicas do estado, pelas vestimentas e também pela alimentação.
A tradição, contudo, também pode funcionar como válvula para reforçar estereótipos e estigmas que estão enraizados em determinada cultura e que, devido a sua construção histórica e social de anos, décadas, séculos, torna-se extremamente complexo romper ou adaptar alguns de seus aspectos. Mas, afinal, que construção é essa? Quais as cores, os trejeitos, os gêneros e as classes dessas vozes que foram consideradas para constituir um ideal do que se tem hoje de uma cultura gaúcha? Afinal, existe apenas uma tradição dentro do Rio Grande do Sul e que é, portanto, plena e absoluta?
O Centro de Ciências Naturais e Exatas (CCNE) decidiu ouvir diferentes pessoas – inseridas na cultura sul-rio-grandense e que ocupam diferentes espaços dentro desta tradição – para compreender o entendimento de cada um sobre o que é ser gaúcho, já que de acordo com o professor Benhur Pinós da Costa, da UFSM, “mesmo quando sabemos da multiplicidade de quem somos, insistimos em ser fronteira e encontrar a todo custo uma unicidade do ser gaúcho”.
Um dos maiores equívocos dos tradicionalistas gaúchos é tomar a tradição conhecida e, portanto, que dá corpo, voz e face ao Rio Grande do Sul como única. Para Josué Goulart, acadêmico de Ciências Sociais e coordenador do Coletivo Afronta, “tomar esta tradição gaúcha como absoluta significa interpretar as mazelas relacionadas à etnia, sexualidade, classe e gênero, tais como o racismo, homofobia e machismo, como costumes e maneiras dentro do movimento e não como o que realmente são: preconceitos e grandes problemas sociais, que fomentam a desigualdade em todos os setores”. Este esquecimento dos preconceitos que cerceiam não apenas a cultura gaúcha, mas a cultura de forma geral, “reverberam em uma identidade gaúcha atrelada ao machismo, ao bairrismo e ao apagamento da história”, opina Alan Ricardo Costa, licenciado em Letras Espanhol e mestre em Letras pela UCPel.
Sobre este apagamento histórico, Leonardo Berté Nunes, acadêmico de Geografia, relembra o massacre aos Lanceiros Negros, que foi um grupo organizado por ex-escravos excepcionais em combate mortos no lugar de receber uma carta de alforria. Afinal, o que estamos celebrando na Semana Farroupilha? São os interesses e conquistas de toda a população gaúcha ou de um grupo seleto?
Neste contexto, é possível refletir: qual perspectiva da história está sendo ensinada nas escolas e nas outras instituições e, dessa forma, que está criando o conhecimento sobre o que foi a Revolução Farroupilha? Edipo Djavan dos Reis, licenciado em História pela URI e mestre em Geografia pela UFSM, com a dissertação intitulada “Homossexualidades na territorialidade tradicionalista gaúcha” comenta que, a partir de suas pesquisas sobre gênero dentro do tradicionalismo gaúcho e vivências como homossexual inserido no movimento, “a história que eu estudei é diferente das histórias que geralmente são contadas dentro do movimento tradicionalista” e que “apesar de existir tolerância [aos homossexuais], não há uma total aceitação”.
Essa história acaba por ser falha em representações, o que Louise da Silveira, licenciada em Letras pela UFN e mestranda em Geografia pela UFSM, aponta, contando que a Semana Farroupilha, em seu tempo de escola, era sempre constrangedora. Por ser negra, ela não se via representada nas imagens para colorir de peões e prendas, sempre altos, brancos e com os cabelos longos, além de não ter dinheiro para comprar um vestido e comparecer às atividades da semana “tipicamente trajada”. Entretanto, o sentimento de Louise em relação ao seu estado é de pertencimento. “Sou uma gaúcha tradicional do século XXI, mas não cultuo elementos tradicionalistas. O sul não ‘é o meu país’, é meu lar”, pontua.
Não cultuar todos os elementos inerentes à cultura gaúcha não significa, portanto, ser menos gaúcho. É importante reconhecer os diferentes tipos de ser gaúcho e a pluralidade e diversidade presente em nossa terra, assim como ouvir as novas vozes e perspectivas. Se no passado muitos grupos ficaram calados, por que agora devem continuar? A história é continuamente escrita e somos nós, como atores sociais, que contribuímos para o surgimento de novos capítulos. Igor Corrêa Pereira, licenciado em Geografia, fala que “a história não só é, ela pode vir a ser. Da mesma forma, a identidade. Construir um novo sentido do que é ser gaúcho é tarefa dos que querem mudanças no mundo e na sociedade”. O que para Dioggo C. Dresch, acadêmico de Matemática, reflete em um novo olhar do gaúcho. Para ele, é uma “batalha diária” contra todas as problemáticas sociais existentes.
Texto: J. Antônio de S. Buere Filho, acadêmico de Produção Editorial e bolsista do Núcleo de Divulgação do CCNE
Edição: Wellington Gonçalves, relações públicas do Núcleo de Divulgação do CCNE