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Tradutor premiado de Shakespeare, professor da UFSM reapresenta “Otelo” ao público brasileiro



Mas almas ciumentas não operam assim:

O ciúme que sentem não tem motivação,

O ciúme vem do ciúme. É um monstro

Que a si mesmo gera e a si mesmo procria

Emília (ato III, cena IV)

Não poderia existir subtítulo mais apropriado que O Mouro de Veneza para a tragédia de
Otelo, o líder militar que, tendo conquistado todas as glórias possíveis nos
campos de batalha, acaba por sucumbir a uma arma então desconhecida por ele: o
ciúme, instigado injustamente contra a fiel Desdêmona pelo invejoso Iago. Além
de ser uma das mais célebres obras literárias sobre o tema, pela força como
William Shakespeare disseca os mecanismos que engendram o ciúme mais extremo e
absurdo, Otelo é também uma tragédia
que fala da situação do “estranho no ninho”, inescapável mesmo em uma cidade
cosmopolita como Veneza em seus tempos áureos de riqueza e poder. Essa história
é reapresentada ao público brasileiro em uma tradução empreendida pelo
professor Lawrence Flores Pereira, do Departamento de Letras Estrangeiras
Modernas da UFSM. O livro foi lançado neste ano pela Penguin, selo da Companhia das Letras.

Mesmo tendo sido elevado ao posto de general por
méritos próprios, renunciado ao islamismo e se convertido ao catolicismo, a
situação de estranheza do personagem principal perante os habitantes locais é
imediatamente denunciada pela cor da sua pele. Otelo é africano. E, mesmo em
uma época em que o tráfico negreiro de escravos era um negócio ainda
incipiente, não faltam na peça alusões a preconceitos e superstições atribuídas
aos mouros.

A começar por Brabâncio, sogro de Otelo, que se
revolta ao saber do casamento às escondidas da filha Desdêmona com o mouro. Na
cabeça do velho senador, a atração de sua filha por Otelo só poderia se dar por
artes de magias e poções, ou seja, acusa-o de tê-la literalmente enfeitiçado.
Brabâncio leva a acusação ao senado e ao duque de Veneza, mas Otelo se livra
dela com um discurso em que narra as vicissitudes e provações que passou ao
longo da vida, de uma criança sequestrada que veio a tornar-se herói de guerra.
Foi com palavras semelhantes que Otelo “enfeitiçou” Desdêmona.

O discurso do mouro é ainda mais persuasivo quando
lembra as autoridades da sua utilidade para Veneza, como o general de um
exército que a defende das constantes ameaças dos turcos. O julgamento termina
e logo Otelo é enviado para uma missão: salvar o Chipre de uma iminente invasão
por naus turcas. A fúria das tempestades marítimas praticamente se encarrega
sozinha de destruir a frota do sultão. E a comitiva veneziana chega sã e salva a
solo cipriota, incluindo o casal Otelo e Desdêmona, mas também o intrigante
Iago. É lá que a tragédia se desenrola.

Como motivo para o ódio que sente por Otelo, Iago
alega o fato de ter sido preterido por Cássio a uma promoção para o posto de tenente.
Mesmo assim, o intrigante conta com a inteira confiança do mouro, da qual usa
para instilar em Otelo as suspeitas de que Desdêmona o estaria traindo com
Cássio. Para o mouro, a situação é esclarecida por Emília, mulher de Iago, que
denuncia os ardis de seu marido. Mas então já era tarde demais. O guerreiro já
tinha usado suas mãos poderosas para estrangular o frágil pescoço da inocente
esposa. Louco de remorso, Otelo suicida-se com um punhal após beijar o cadáver
da mulher que assassinou.

Interpretações
Como
prefácio para a edição, Lawrence preparou uma introdução de 80 páginas, na qual
compara as interpretações que a peça teve ao longo do tempo por diferentes
públicos, desde a época de Shakespeare até os dias atuais. Ao prefácio,
segue-se um ensaio (também traduzido por Lawrence) no qual o poeta inglês W. H.
Auden se posiciona sobre as controvérsias relacionadas à peça.

Existem controvérsias inclusive quanto à própria
“negritude” de Otelo, personagem cuja composição tem como fonte a novela Il Capitano Moro, de Giovanni Battista
Giraldi, escritor de uma geração anterior à de Shakespeare. Há críticos e
historiadores que sustentam que Otelo seria um personagem originário do norte
da África, com um tom de pele menos escuro (semelhante aos árabes) que os
provenientes do sul do continente. Outros, por sua vez, advogam o contrário.

Para Shakespeare, livro escrito por Giovanni Battista Giraldi foi fonte de inspiração para a crição de Otelo

Seja como for, um personagem negro com tanto poder e
um cargo tão elevado deve ter parecido menos estranho para os espectadores da
época de Shakespeare do que para o público de teatro dos séculos 18 e 19, e
mesmo do início do século 20. Embora provavelmente a maioria dos ingleses
contemporâneos do bardo jamais tivesse visto uma pessoa negra em sua vida, na sua lembrança os mouros eram um povo temível e poderoso, que ocupou Espanha e Portugal
por séculos.

Mas, com o avanço desenfreado do tráfico de escravos
da África, começou a parecer cada vez mais inverossímil para o público vindouro
enxergar um negro como general de uma importante república europeia. O racismo
também se refletia dentro do palco, pois o Otelo que os espectadores viam era
invariavelmente um ator branco com o rosto pintado. Isso mudou somente em
meados do século 19, quando o americano Ira Aldridge se tornou reconhecido como
o primeiro ator negro a interpretar Otelo. Pouco antes disso, no entanto, o
ator inglês Edmund Kean chegou a interpretar um Otelo de feições mais claras.

Na opinião de Lawrence, Shakespeare não faz da cor a
razão do declínio de Otelo, mas apresenta um personagem, Iago, que usa
linguagem racista, dando-lhe o papel claro de vilão. Importante também é sua
condição de estrangeiro, que se
sustentava na interdependência entre o general mouro e o estado veneziano. A
ânsia de Otelo por adaptar-se, de ser e comportar-se como um homem
“civilizado”, é percebida por Iago, que consegue habilmente desestabilizar o
frágil equilíbrio psicológico derivado dessa situação.

Embora menos aparente na peça que as questões
relacionadas ao racismo e à xenofobia, os temas relativos à condição das
mulheres na sociedade também se fazem presente em Otelo. É, aliás, uma marca do teatro shakespeariano a presença de
mulheres fortes, seja para o bem ou para o mal. Julieta, Lady Macbeth, Gertrude
(mãe de Hamlet) e as três filhas do Rei Lear são alguns dos exemplos mais
famosos.

O imaginário do público da época de Shakespeare,
inclusive fora do teatro, era povoado por personalidades femininas fortes, pois
viviam sob a égide de uma das chefes de estado mais notáveis da história
britânica, a rainha Elizabeth I. Última monarca da dinastia dos Tudors, ela
morreu em 1603. Estima-se que Otelo
tenha sido escrita entre 1601 e 1604, ou seja, nos estertores do seu reinado ou
já na transição para o reinado de Jaime I, que a sucedeu no trono.

Desdêmona está longe de ser uma dessas clássicas
personagens fortes. Ela é geralmente lembrada apenas como uma personagem
passiva, que sofre injustamente e morre em consequência disso. Mas é a mesma
Desdêmona que, no início da peça, se casa com Otelo contra a vontade do pai e
defende com veemência a si e ao seu marido contra as acusações dele.

Embora de importância secundária na peça, a mulher
mais forte em Otelo é, sem dúvida,
Emília. Ela funciona como uma espécie de contraponto para Desdêmona, de quem
não compartilha nem um pouco das concepções idealistas do amor e da confiança
nos homens. A sua desilusão com o sexo masculino é fruto de seu casamento
infeliz com Iago, a quem entretanto procura ajudar, mas sem suspeitar – até o
último momento – da sua trama contra Otelo e Desdêmona. Em sua introdução à
peça, Lawrence chega a classificar como “protofeminista” a postura e o discurso
de Emília.

Do núcleo principal de personagens, o de decifração
mais difícil talvez seja Iago, pois não se veem motivos suficientes para sua
maldade e inveja extremas. Alguns intérpretes o enxergam como uma representação
de um racionalismo rasteiro, sem nenhum traço de idealismo. Ele é também um
personagem que assume diferentes discursos dependendo de quem o acompanha ou
quando reflete em voz alta nos monólogos.

“Se acaso eu fosse o Mouro, eu não seria Iago.

Se eu o sigo, na verdade eu sigo a mim mesmo.

E o céu sabe, não é amor, não é dever,

E se parecer ser, é em prol dos meus intuitos.

Pois se as minhas ações exteriores mostrarem

Meus atos inatos, meu vero coração

Exposto à clara luz, vai ser rápido até

Que eu entregue às gralhas meu coração desnudo

Pra que o espicacem. Eu não sou o que sou.”

Iago (ato I, cena I)

Professor Lawrence Pereira ganhou em 2016 o Prêmio Jabuti pela sua traduação de "Hamlet". Crédito foto: Lucas Casali

Notas
do tradutor –
Da mesma forma que em sua premiada tradução de Hamlet, Lawrence escolheu
os versos dodecassílabos para verter ao português a poesia de Otelo (que também contém partes em
prosa), escrita originalmente na métrica do pentâmetro iâmbico. O texto
traduzido é uma fusão das duas edições principais da peça publicadas no século
17, em dois diferentes métodos de editoração: o in-fólio (em que cada folha
impressa é dobrada ao meio) e o in-quarto (no qual a folha é dobrada duas
vezes). O livro contém as indicações de qual versão, em cada trecho, foi usada
para a tradução.

Para facilitar a busca por trechos específicos da
peça, a presente edição dispõe também da numeração dos versos e, no topo de
cada página, há a identificação do ato e da cena a que eles pertencem. Ao final
do livro, o leitor encontra ainda 56 páginas de notas explicativas a respeito
de diversas passagens da peça.

Agraciado em 2016 com o Prêmio Jabuti pela sua
tradução de Hamlet, Lawrence tem
planos de ver o seu Otelo transposto
para o palco. Apaixonado por poesia, ele já transpôs para o português obras
originalmente escritas em inglês, grego antigo, francês, espanhol e alemão. Entre
os autores já traduzidos por ele, estão T. S. Eliot, Barbey d’Aurevilly, Emily
Dickinson, Guillaume Appolinaire, Calderón de la Barca, Friedrich Hölderlin,
Charles Baudelaire e Wallace Stevens, entre outros.

Em um trabalho conjunto com a professora Kathrin Rosenfield, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Lawrence também produziu uma
tradução da Antígona, de Sófocles, e
lançou – pela Editora UFSM – o livro Lendo
J. M. Coetzee
, uma coletânea de ensaios sobre o escritor sul-africano
vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2003.

Texto:
Lucas Casali

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