Fazer vestibular para um curso que se gosta ou apostar no curso que está “mais na moda” no mercado de trabalho? Seguir a orientação dos pais ou ignorar conselhos e escolher pela própria cabeça? Essas inquietações que afetam os jovens vestibulandos atualmente não são tão diferentes das que tiraram o sono de Dermeval Saviani, hoje aos 68 de idade, na época em que ele decidiu se faria filosofia ou contabilidade.
Entre o curso que tinha afinidade e outro que poderia lhe garantir um emprego rapidamente, ficou com a primeira opção. Foi bem sucedido e hoje é reconhecido pelo seu trabalho. Filósofo formado na PUC-SP atuante na área da pedagogia, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador emérito do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Saviani é autor de um dos artigos publicados no livro Universidade Hoje: o que precisa ser dito?, lançado este ano pela editora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Filho de operários que nunca tiveram a oportunidade de frequentar a escola, Saviani deixou a casa dos pais aos 11 anos, a convite de um padre que lhe dava aulas no seminário, para continuar os estudos no interior do Mato Grosso.
— Eu não me imaginava indo estudar, eu me imaginava levantando de madrugada com a marmita debaixo do braço e indo para a fábrica trabalhar, que era o que os meus irmãos mais velhos faziam — recorda.
Desafiou a crença dos pais, que não viam futuro na filosofia e tinham a ideia de que universidade não era “coisa para pobre”.
— O grande drama da minha mãe era esse. Ela era muito católica e achava que se não permitisse minha ida ela estaria contrariando a vontade de Deus.
Concluiu o ginásio, o colegial, e quando se viu diante da escolha do vestibular chegou a pensar em deixar a filosofia para mais tarde, mas não demorou muito até chegar à seguinte conclusão:
— Eu vou ficar só com a filosofia, vou fazê-la o melhor possível e vou procurar me situar profissionalmente nesse campo. E até tinha colegas que diziam "mas pra que estás fazendo filosofia? Pra ficar vendo as estrelas?". Depois que eu pensei melhor e decidi eu respondia brincando "ah, pra ficar vendo as estrelas", porque não adiantava ficar argumentando… — conta ele, bem humorado.
Mas ainda havia o problema financeiro imediato e para sobreviver Saviani arrumou emprego em um banco.
— Trabalhava das sete a uma, ganhava salário mínimo, não tinha dinheiro nem pra almoçar, comia um pãozinho com copo de leite e ia para a universidade. As aulas terminavam umas oito da noite, aí eu pegava duas conduções para chegar em casa e ainda tinha algumas tarefas para fazer. Lá pela meia-noite ia dormir, cinco horas levantava e fui tocando assim.
Não demorou até Saviani ser convidado para assumir a cadeira de professor de filosofia em educação no curso de pedagogia e desenvolver seu próprio projeto pedagógico. E depois não parou mais.
Para ele, os dilemas dos jovens vestibulandos de hoje não são tão diferentes dos enfrentados pelos jovens daquela época, e refletem questões mal resolvidas dentro do próprio sistema de educação e da própria organização social. O principal deles: a dicotomia entre as demandas do mercado de trabalho e as necessidades humanas.
— Do ponto de vista da educação, o projeto dominante é um projeto de uma educação imediatista que diz que a população deve saber apenas aquilo necessário para "se virar na vida". Agora, quando se pensa numa sociedade que ultrapasse esses limites, então você vai ter um modelo de educação de outro teor — diz o professor, que critica a limitação do sistema de ensino atual imposta pelos métodos de avaliação.
— As avaliações hoje fazem com que hoje os cursos não funcionem mais para formar indivíduos conscientes, como se diz nos objetivos, cidadãos conscientes, qualificados para o trabalho e para o exercício da cidadania. Aquilo que era uma incidência hoje é filosofia da educação, de todo o sistema de ensino, porque tudo se guia pelos testes.
Outra questão mal resolvida no atual sistema de ensino, apontada pelo professor, é o Ensino Médio, “interpretado às vezes como a continuidade do Ensino Fundamental, tendo caráter de preparação para o Ensino Superior, e em outros momentos como um ensino profissionalizante, que já deveria ser terminal”.
Dermeval Saviani chama atenção ainda para os perigos da tendência de privatização do ensino e “da educação transformada em mercadoria”, que acabam, segundo ele, por frear os avanços das forças produção e da própria sociedade.
— Assim como lá na Idade Média a classe dominante temia novas descobertas, porque aquilo abalava o seu poder, hoje também a classe dominante não tem interesse em que essa estrutura se desvele. Não é um problema de maquiavelismo, de maldade. É questão dos interesses…
Com os professores Adriana Maciel e Jorge Cunha, durante a visita à UFSM
Confira abaixo alguns dos principais trechos da entrevista em setembro deste ano, durante visita do professor Dermeval Saviani à UFSM:
Agência de Notícias UFSM — Que conselho o senhor daria para um jovem que está hoje decidindo o que fazer no vestibular?
Prof. Dermeval Saviani — Nós estamos num contexto em que assumidamente não há lugar para todos. Na era de ouro capitalismo se visava o pleno emprego. Com a crise dos anos de 1970 isso foi revisto. Por isso, em lugar de se formar para o emprego, hoje o conceito que predomina é o de empregabilidade. Deve-se fazer o máximo de cursos possíveis para ser mais empregável, mas nada garante que você vai ser empregado, você só tem mais possibilidade de vir a ser. E nós temos até o fenômeno dos doutores desempregados.
Às vezes as pessoas têm muitas qualificações para o imediato, mas não tem nada de mais sólido, mais consistente. Hoje nós vemos essa onda de cursos e mais cursos, todos superficiais. Também não há uma segurança que permita que ele [o aluno] vença no chamado mercado competitivo dos dias de hoje.
Então, o que eu sugeriria para um jovem de hoje é: escolha uma área, não importa qual seja, desde que seja uma área com a qual você se identifique, e estude seriamente, se torne qualificado e competente nisso para você enfrentar o mercado que está aí.
Agência de Notícias UFSM — Costuma-se dizer hoje em dia, especialmente como argumento contra o sistema de cotas para o ingresso nas universidades, que “o maior problema da educação está na base”. Mas, logo na introdução do seu artigo “Mutações de uma instituição milenar” o senhor aborda o desenvolvimento da educação institucionalizada e nos conta que foram as universidades que surgiram primeiro no que deu origem ao sistema de educação formal que conhecemos hoje. Levando isso em conta, o senhor concorda que as melhorias da educação devem, necessariamente, começar pela base?
Prof. Dermeval Saviani — Não deixa de ter procedência esse argumento, porque de fato é preciso começar pela base, e é preciso começar bem a partir da base. Agora, o que por vezes se argumenta, é que já que a prioridade é a base, então a cúpula, o Ensino Superior, deve ficar em segundo plano. [Essa] foi um pouco a justificativa da política educacional da “Era FHC”, em que se concentrou o esforço no âmbito do Ensino Fundamental, até mesmo por orientação do Banco Mundial, que colocava o foco todo no Ensino Básico, que correspondia ao antigo Primário, ampliado em alguns países com a fórmula do Primeiro Grau ou do Ensino Fundamental, e com isso não se investiu no Ensino Superior.
Ocorre que não é possível atender satisfatoriamente a Educação Básica se não se cuida do Ensino Superior, porque os que dirigem, os que desenvolvem o ensino na Educação Básica são formados em Nível Superior.
AG UFSM — O senhor acredita ser viável estabelecer um modelo de educação que ofereça aos alunos a possibilidade de um desenvolvimento intelectual amplo e ao mesmo tempo prepare os estudantes para atender as expectativas do mercado de trabalho, no atual cenário econômico brasileiro e internacional?
Prof. Dermeval Saviani — Bom, aí eu acho que é preciso ter presente duas coisas. Uma são as demandas da sociedade atual e a outra são as necessidades humanas que colocam a exigência de superação dessa forma de sociedade. Porque as demandas da sociedade atual, que corresponde à forma capitalista — e a forma capitalista no seu estágio mais avançado, o que quer dizer no seu estágio já terminal (risos) — exacerba as necessidades imediatas, as necessidades do lucro, e subordina os processos formativos a essas demandas imediatas.
Nós estamos nesse contexto, em que há demandas de mercado, essas demandas são imediatas, são pragmáticas. Assim como lá na Idade Média a classe dominante temia novas descobertas, porque aquilo abalava o seu poder, hoje também a classe dominante não tem interesse em que essa estrutura se desvele. Não é um problema de maquiavelismo, de maldade. É questão dos interesses. Os interesses deles impedem. Hoje a classe dominante tende a considerar que esta é a forma da sociedade funcionar, e não adianta querer descobrir outras formas.
Acontece que do ponto de vista da educação o projeto dominante é um projeto de uma educação imediatista que diz que a população deve saber apenas aquilo necessário para "se virar na vida". Agora, quando se pensa numa sociedade que ultrapasse esses limites, então você vai ter um modelo de educação de outro teor.
Isto é uma coisa que pode ser formulada hoje, é uma coisa que tem base no desenvolvimento da sociedade atual, no avanço das forças produtivas que o capitalismo propiciou, mas é uma coisa que não se limita a essa forma social, ela já coloca no horizonte a superação dessa forma social. Então por isso ela se distingue da forma hoje dominante, que quer já profissionalizar no Ensino Médio, quer resultados práticos imediatos e daí leva a essa avaliação de resultados, sempre contabilizando que resultados cada área, cada curso conseguiu, invertendo também o sentido pedagógico.
As avaliações hoje fazem com que hoje os cursos não funcionem mais para formar indivíduos conscientes, como se diz nos objetivos, cidadãos conscientes, qualificados para o trabalho e para o exercício da cidadania. (…) Então aquilo que era uma incidência hoje é filosofia da educação, de todo o sistema de ensino, porque tudo se guia pelos testes.
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Reportagem e edição: Bianca Zanella