Neto de Ana Eulina e Joaquim Mariano da Rocha, Dr. José Mariano da Rocha Filho, reitor fundador da UFSM , teve como inspiração em sua vida dois personagens marcantes. Inicialmente o pai, José, que com o falecimento do avô Joaquim, juntamente com seu irmão Francisco, assumiu a criação e a formação dos seis irmãos mais novos. Outra pessoa marcante na trajetória de Mariano da Rocha foi justamente este irmão de seu pai, Francisco, que assim como José, resolveu cursar a Faculdade de Medicina no estado da Bahia no final do século XIX. José, o pai de Mariano passou seis anos sem visitar o Rio Grande do Sul. Durante o curso, muitas vezes sem ter o que comer trabalhou empalhando cadeiras.
José Mariano da Rocha retornou a Santa Maria no início do século XX, durante o período de ascensão das ferrovias na região central do estado. O médico, recém-formado, fundou, juntamente com seu irmão Francisco, a Sociedade de Medicina de Santa Maria. Dr. José Mariano da Rocha Filho é uma mistura de José e Francisco Mariano da Rocha. Herdou do primeiro, seu pai, a praticidade e a facilidade de elaborar planos e projetos que previam todos os percalços possíveis. Do segundo, seu tio, herdou o lado humanitário, que buscava sempre um mundo melhor para viver. Contando sempre com a prática política que lhe proporcionou uma convivência saudável e amistosa com políticos seguidores das mais diversas ideologias.
Formado em Medicina, Dr. Mariano desde sempre esteve envolto por atividades de liderança. Foi líder estudantil e presidente honorário do sindicato dos jornalistas de Santa Maria e fazia parte da Associação Riograndense de Imprensa. Durante praticamente toda a vida esteve envolvido com a expansão geográfica e social do conhecimento.
Um pai, uma inspiração
Filha de um visionário, a professora Eugênia Maria Mariano da Rocha Barichello sempre procurou estar muito próxima de seu pai. Hoje, ela ajuda a manter sua obra ministrando aulas nos cursos de Comunicação Social da Universidade Federal de Santa Maria.
A primeira leitura científica de Eugênia foi a tese de doutorado de seu avô, aos catorze anos de idade. A obra tratava da melancolia, que hoje provavelmente se identificaria com a depressão. O estudo era focado nos casos de suicídio e de doenças dos negros africanos trazidos para o Brasil em função da escravidão. Convivendo tão frequente e profundamente com o conhecimento acadêmico dentro de casa, Eugênia logo cedo percebeu que era uma menina privilegiada. E tratou de aproveitar bem a oportunidade.
Muito cedo recorda de ter perguntado ao pai: “Pai, quando tu começaste a pensar na construção da Universidade?”. Então ele respondeu: “Minha filha, nem me lembro. Pra mim, sempre viveu no meu pensamento”.
Para Dr. José Mariano da Rocha Filho, as ideias estavam sempre prontas em sua cabeça. Aos 14 anos de idade, já pensava na construção da Universidade. Pensava em tudo, até mesmo nas soluções dos problemas que poderiam surgir ao longo de sua jornada. Em carta dirigida a sua mãe, com essa mesma idade, Dr. Mariano já falava em viver uma vida com ações voltadas para o bem de toda a humanidade. Ainda na faculdade já convidava colegas para serem professores na universidade que futuramente fundaria.
Longe mas sempre perto
Dr. Mariano era um pai muito presente. Eugênia diz: “Cada filho tem um pai, por mais que este seja o mesmo homem. Cada um tem sua percepção, de acordo com aquilo que é”. Ela conta que procurava, sempre que possível, acompanhar seu pai.
Ele costumava trabalhar das oito da manhã até tarde da noite. Porém quando estava em casa, certamente havia o tempo reservado para as brincadeiras com os filhos. Dr. Mariano gostava muito de ter os filhos por perto. Estar com eles no colo. Para Eugênia – que era uma das mais novas, a décima filha entre 12 irmãos – restavam, normalmente, apenas as pernas do pai.
“O pai gostava de contar histórias”. Costume este que prof. Eugênia herdou. Romances e lutas de Anita e Giuseppe Garibaldi, lendas regionalistas como as do Negrinho do Pastoreio e a da Salamanca do Jarau. Mitologia grega e contos de Simões Lopes Neto. A bravura do herói Sepé Tiarajú. Essas e as fantásticas histórias inventadas pelo pai compuseram a infância de Eugênia e de todos os seus 11 irmãos.
Gremista, Mariano lembrava do futebol, normalmente, apenas nos dias de jogos. Dias esses que eram muito festivos. Eugênia lembra com carinho da banda formada com o pai e os irmãos nos dias de jogo: munidos de panelas, potes, baldes e colheres a banda desfilava pela casa e fazia uma grande festa, independente do resultado do jogo.
Os filhos do Dr. José Mariano da Rocha Filho passavam as férias na fazenda de seu sogro, em Caçapava do Sul. Durante esse período, o pai normalmente ia para casa nos finais de semana. Nesses dias, as pescarias e os banhos de rio eram praticamente rituais esperados ansiosamente pelas crianças. Quando não era possível deixar Santa Maria, Mariano trazia a família para junto de si na cidade.
Nesse caso, os passeios eram na Universidade, ainda em fase de construção. Prof.ª Eugênia lembra saudosa que, mesmo muito ocupado, o pai empreendia esforços para que seus filhos se divertissem. No campus, a missão dada pelo pai eram escavações que buscavam encontrar ossos de dinossauros. No fim do dia, os filhos estavam todos cobertos de lama e com caixas de pedras, paus e ossos, que acreditavam ser grandes descobertas arqueológicas.
As viagens da família até Santa Maria eram realizadas em uma Kombi. “Era a única forma de acomodar tantos filhos”, conta a prof.ª Eugênia. O trajeto até a cidade era percorrido ao som de cantigas infantis. “Era muito gostoso, vínhamos de lá até aqui cantando ‘estava a velha a fiar, veio a mosca incomodar… ’. Os momentos com o pai eram sempre os mais divertidos. Não que ele não ralhasse, que não fosse mais incisivo quando necessário. Mas na maior parte do tempo em que estávamos juntos, nos divertíamos muito”.
Dr. Mariano já chegava em casa gritando. Ele sabia que a esposa certamente estaria ocupada com algum dos 12 filhos ou atarefada com alguma atividade doméstica. Precisava ser chamada para ser encontrada. “Mariaaa! Mariaaa! Mariaa… Era assim que ele entrava em casa, chamando pela mãe. Quando a encontrava, ele a beijava e a abraçava”.
Afetuoso, gostava de demonstrar carinho pelas pessoas, especialmente pelos filhos. Muitas pessoas não compreendiam como um casal tão esclarecido podia ter 12 filhos. As dificuldades em criar um filho não se restringem às financeiras, dar carinho e atenção a todos era, por certo, um grande desafio. Ainda mais para um homem tão atarefado e responsável.
Quanto a isso, Dr. Mariano costumava ser enfático e direto, ele dizia: “Os filhos são como o gás. Cada um preenche totalmente o espaço”. Segundo Eugênia, sempre houve amor, carinho e atenção para todos de maneira igual, mesmo em meio a tantos compromissos. “Há muitas fotos do início da UFSM em que o pai aparece acompanhado de algum filho. Para poder estar conosco, ele tinha que nos levar ao trabalho”.
Certa vez prof.ª Eugênia convidou-o para morar com a família. Disse lembrar-se perfeitamente de que aos cinco anos de idade falou ao pai: “Paizinho, eu gosto tanto de ti! Gosto tanto de quando tu estás aqui! Por que tu não vens morar com a gente?” Ela se lembra de ter visto a preocupação nos olhos do pai. Porém os momentos bons como aqueles destinados à escuta da música erudita, especialmente de Heitor Villa-Lobos – de quem Dr. Mariano era fã, faziam com que a dolorosa separação fosse pouco mais suportável.
A partir do momento em que começou a deixar de ser criança, prof.ª Eugênia passou a acompanhar mais frequentemente os passos do pai. Ela e os irmãos estavam com ele em todos os lugares possíveis. A família era presença garantida nas missas, especialmente nas dominicais. Católico praticante, Dr. Mariano da Rocha era reconhecido pela enorme fé que tinha. Prof.ª Eugênia conta que o pai era um “cristão diferente”. Ele via também na religião uma oportunidade de esclarecimento e amadurecimento em busca da igualdade e da justiça entre os homens.
Não raro contestava o padre quando discordava com a interpretação da leitura do evangelho. Dependendo da abertura do ministrante do culto, essa manifestação se restringia a uma “expansão” da interpretação do evangelho. “Quer coisa mais democrática que isso?” Diverte-se contando a filha.
A convivência sempre pacífica e prazerosa com o pai exigia o cumprimento de uma condição: a apresentação de boas notas no boletim. “Descobri que boas notas conquistavam meu pai. Não precisando se preocupar com isso, sobrava mais tempo para nos divertirmos juntos”.
Contando histórias e dando aulas de biologia, Dr. Mariano era capaz de entreter os filhos durante um dia inteiro. Na fazenda em que moravam, Eugênia e seus irmãos buscavam o túmulo do guerreiro índio Sepé e plantavam pomares para o futuro.
Planejamento e jogo de cintura: as armas do reitor fundador
Dentre os mitos preferidos de Dr. Mariano, estava o mito de Prometeu. A história do homem que roubou o fogo dos deuses do Olimpo a fim de levar o conhecimento a toda a humanidade povoou a imaginação de seus filhos por toda a sua infância. O pai acreditava na educação como um processo dinâmico e contínuo e transmitir essas ideias a seus filhos sempre lhe pareceu essencial.
Para que esse processo fosse bem sucedido, porém, Dr. Mariano ensinou aos filhos que algumas práticas são indispensáveis. Acreditar e motivar a equipe envolvida na execução de um projeto é fundamental. Prof.ª Eugênia conta que seu pai sempre foi uma pessoa acessível e confiante. “Os alunos dele, quando ele se referia, eram os melhores do mundo. Os professores também, os melhores.”
Ela conta que por vezes ele entrava nas salas de aula acompanhado de professores e profissionais renomados internacionalmente, tão logo avistava seus pupilos e seus colegas professores e já começava a chuva de elogios: “Esse é o melhor professor de química do mundo, não existe melhor, ele fez isso, ele fez aquilo, sabe fazer tal coisa…”. Esse comportamento sempre fez com que os membros de sua equipe se engajassem de verdade em suas ideias mais utopistas.
Segundo prof.ª Eugênia, o jogo de cintura do pai também colaborou para que a maioria de seus projetos fossem concretizados. Dr. Mariano se intitulava um otimista operacional. Imaginava até mesmo os piores cenários para suas ideias, e tentava realizar os melhores.
A filha conta que no final dos anos 1960, enquanto ministrava aulas em uma universidade na capital da Alemanha Ocidental, o pai descobriu que alguns países do leste europeu tinham dívidas com o Brasil e não possuíam dinheiro para quitá-las. Em conversa com o deputado federal, e seu amigo, Tarso Dutra, Dr. Mariano conseguiu que a dívida fosse paga por meio do fornecimento de equipamentos que seriam suficientes para construir 11 planetários pelo país.
Dessa forma, o desejo de construir um planetário na cidade de Santa Maria se realizaria. Porém, alguns meses depois do bem-sucedido negócio, Dr. Mariano descobriu que a instalação de alguns planetários estava quase completa e que talvez não sobrassem equipamentos suficientes para a instalação do planetário santa-mariense.
Sem pestanejar, ele ligou para Santa Maria e ordenou que se desse início às obras, que se colocasse uma placa anunciando o projeto, se fotografasse e se divulgasse na imprensa de todo o estado. Com jornais em mãos, Dr. Mariano cobrou dos responsáveis: “Como não vai ter planetário em Santa Maria? Olha aqui, as obras até já começaram”. Quatro dias depois ele retornou à cidade com a garantia de que a obra seria realizada.
Lições de pai pra filha, de mestre para aprendiz
“Uma trajetória é como um rio. Tem duas margens.” É com essa frase, que demonstra que jogo de cintura também se aprende, que a prof.ª Eugênia iniciou seu depoimento sobre a criação da Faculdade de Comunicação Social da UFSM (Facos), que, supostamente, teria sido criada pelo pai para ela. “A história desse curso todos podem encontrar nas atas, na imprensa, nos escritos, nas declarações oficiais. Porém o mito está na subjetividade, na imaginação das pessoas”. Em discurso proferido há alguns anos, Eugênia diz ter afirmado que o mito de a Facos ter sido criada para que ela pudesse estudar jornalismo – um dos cursos que mais a aproximaria do sonho de ser escritora – já lhe deu muita dor de cabeça. “Eu chorei muito quando eu entrei na faculdade por causa dessa história”, conta. Entretanto, se por um tempo isso a incomodou, hoje é uma coisa que a deixa muito orgulhosa.
“Eu acredito que não é verdade, mas se fosse verdade, seria uma coisa muito lisonjeira para mim que um pai tão ocupado, tão cheio de coisas mais importantes para fazer – tanto fora de casa, quanto com os 12 filhos – tenha se lembrado de criar um curso pra sua décima filha”, diz. Dezoito anos depois de sua formatura, Eugênia voltou à UFSM como professora, para ajudar a cuidar do curso, que muitos acreditam ser dela.
Perguntada sobre se sentir responsável pela Facos, prof.ª Eugênia é enfática: “Não, eu me sinto parte dela. Acho que aquele é meu lugar”. É latente o amor que ela nutre pelo local onde trabalha. É com um sorriso incontido que reafirma com convicção as premissas da vida de seu pai: “A educação é o único caminho. Os homens precisam ser polidos em busca de seu mais puro humanismo. Fé é sinônimo de coragem. Quem tem fé, tem coragem, porque não tem medo, e segue em frente, e consegue o impossível”. Impossível, essa era a palavra que, segundo prof.ª Eugênia, o pai dizia dever ser apagada do dicionário.
Desde a mais remota de suas lembranças, Dr. José Mariano da Rocha Filho alimentou o sonho de criar uma universidade que colaborasse na evolução para um mundo mais justo, mais igual, mais esclarecido. Realizar esse sonho, sem, em momento algum, abrir mão de estar com a sua família foi o maior desafio que a vida propôs ao fundador da UFSM e nisso ele também triunfou. “Ele era uma dessas criaturas especiais, que só nascem de vez em quando, sabe?”, finaliza prof.ª Eugênia.
Repórter:
Fernanda Arispe – Acadêmica de Jornalismo.
Edição:
Lucas Durr Missau.